O papel dos sindicatos na democracia a construir
Desde os anos 90, neoliberalismo desestrutura
mercado de trabalho. Resgatar direitos, renda e
identidade laboral exigirá sindicatos conectados a
nova realidade.
Por Marcio Pochmann
A democracia representativa não se faz plena quando
a organização e apresentação do mundo do trabalho se
encontram frágeis e deslocadas da realidade como
atualmente ocorre no Brasil. A recorrente adoção do
receituário neoliberal a partir de 1990 fez com que
a classe trabalhadora conformada pela sociedade
urbana e industrial fosse profundamente ferida de
morte.
Até então, o projeto nacional desenvolvimentista
iniciado com a Revolução de 1930 buscava transformar
a antiga massa rural sobrante herdada da sociedade
agrária em proletários urbanos constituídos de
cidadania regulada pelo acesso aos direitos sociais
e trabalhistas. Nesse sentido, o Sistema Corporativo
de Relações de Trabalho centrado na Consolidação das
Leis do Trabalho de 1943 definia o novo corpo social
constituído pela identidade da categoria portadora
de carteira profissional e sujeito de direitos
consagrados pelo pertencimento ao sindicato e à
proteção da Justiça do Trabalho.
Em plena virada para a década de 1980, quando
sociedade urbana e industrial parecia se aproximar
do seu auge, a virada de mesa imposta pela adesão
passiva e subordinada à globalização interrompeu a
constituição de quase um século da classe
trabalhadora assalariada. Com isso, a relação
salarial que se afirmava desde a abolição da
escravatura, em 1889 começou a ser rompida.
A inflexão no sentido da estruturação do mercado de
trabalho via assalariamento seguiu o movimento de
estagnação da renda per capita nacional movido pela
transição do modelo econômico de substituição de
importações para o primário-exportador. A
desindustrialização marcou a virada no conjunto da
estrutura produtiva que, antes diversificada,
complexa, articulada e internamente integrada,
converteu-se cada vez mais em especializada,
simplificada, desarticulada e externamente
integrada.
As consequências para o mundo do trabalho foram
imediatas, diretas e expressivas. O desemprego
aberto, desconhecido desde a Depressão de 1929,
passou a ter presença constante.
Em maior ou menor medida, a essência da desocupação
foi sendo travestida em crescente massa urbana
sobrante vivendo de estratégias de subsistência. A
nova metodologia do desemprego introduzida na década
de 1980 pelo Dieese permitiu saber, em parceria com
instituições públicas paulistas, qual parte
importante do fenômeno do desemprego permanecia
oculta na pesquisa oficial da época.
Sem capacidade de interromper o movimento de
dissolução da relação salarial, medidas
governamentais diversas e sucessivas foram sendo
adotadas diante da desestruturação do mercado de
trabalho. De um lado, surgiram as iniciativas de
convivência com a desocupação expressas pela
introdução do seguro-desemprego e pela profusão de
programas variados de garantia de renda
crescentemente desconectados da trajetória laboral.
De outro, as ações governamentais contemporizadoras
com a massa excedente da mão de obra trataram de
legalizar o rebaixamento do patamar de rendimentos e
dos direitos sociais e trabalhistas. Sob a
denominação de modernização da legislação
trabalhista, a precarização laboral passou a ser
oficializada pela flexibilização contratual, como a
formalização da terceirização, dos
microempreendedores individuais, de microempresas e
da pejotização.
A reconfiguração do mundo do trabalho apontou para
outro sujeito social, cada vez mais distante e
descrente da estrutura corporativa de organização e
representação dos interesses laborais. Sem
identidade e pertencimento próprios da relação
salarial, parcela crescente da classe trabalhadora
segue em busca de sindicatos contemporâneos com a
realidade atual, conforme destacado na publicação
recém-lançada: O sindicato tem futuro? (Expressão
Popular/FRL, 2022).
A representatividade coletiva, especialmente da
classe trabalhadora, constitui a base fundamental em
direção à qual a democracia brasileira precisa
avançar rapidamente. Do contrário, o
desbalanceamento nas forças sociais do trabalho se
expressa na política enquanto representação
predominante do capital.
Autor é economista, pesquisador e político
brasileiro. Professor titular da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da
Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007
e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001
a 2004.
Fonte: Outras Palavras - Do Blog de Notícias da CNTI
https://cnti.org.br/html/noticias.htm#O_papel_dos_sindicatos_na_democracia_a_construir
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