Extinção ou mudanças em regras podem ampliar a ocorrência de
acidentes, mortes e adoecimentos no ambiente de trabalho
Escrito por: Antonio Biondi e Napoleão de Almeida, do Brasil de Fato
Agosto
registrou uma série de acidentes com mortes ou graves lesões a
trabalhadores por todo o Brasil. A queda de uma viga, durante a
construção de um frigorífico em Iporã (PR), matou Adalto Alves Cardoso
aos 69 anos e feriu outro trabalhador com gravidade. Em Pouso Alegre
(MG), Ivan Fidélis, 36 anos, foi soterrado durante uma escavação. O
coletor de lixo Marcio Alves de Souza morreu no dia 13 após um
capotamento do caminhão em que trabalhava, em Goiânia (GO). Em Curitiba
(PR), outro operário da construção civil teve a perna presa em uma
máquina de cimento.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil ocupa o 4º lugar mundial em acidentes no trabalho.
Em
2018, de acordo com Observatório Digital de Saúde e Segurança do
Trabalho, houve 623,8 mil comunicações de casos envolvendo morte,
invalidez ou afastamento por doenças de trabalho no país. Entre 2012 a
2018, mostra a plataforma, o Brasil registrou 16.455 mortes e 4,5
milhões acidentes. No período, os gastos da Previdência com Benefícios
Acidentários foram de R$ 79 bilhões.
Os números são assustadores,
mas não a ponto de sensibilizar o governo Jair Bolsonaro (PSL). Ao
contrário, sob o pretexto de que seria preciso “desburocratizar” o
regramento trabalhista, o presidente vem promovendo ou apoiando uma
série de ações que afetam ainda mais a saúde e a vida dos trabalhadores.
Entre
elas, está o esvaziamento ou a extinção das 36 Normas Reguladoras (NRs)
consolidadas ao longo de quatro décadas de debates e estudos sobre
proteção no ambiente de trabalho. A mudança nas NRs foi anunciada em
maio por Bolsonaro, com o alegado objetivo de “simplificar as regras e
melhorar a produtividade”.
O avanço sobre a regulamentação é uma
forma de dizer aos agentes públicos que possuem a competência legal de
proteger a vida dos trabalhadores para que “saiam do cangote dos
empresários”.
A primeira NR revogada foi a de número 2. Com a
medida, o empresário não precisa mais provar, antes de abrir o negócio,
que seu estabelecimento segue as normas de segurança para os
trabalhadores.
Outras três NRs estão sendo modificadas também no
sentido de facilitar a vida do empregador, aumentando os riscos para os
empregados: a NR1, a NR3 e a NR12.
As mudanças previstas na NR12
são as que mais preocupam, já que vão flexibilizar as regras de
segurança para ambientes com máquinas e equipamentos – responsáveis por
grande número de acidentes, mortes e mutilações.
Já a alteração na
NR1 libera o empresário de dar treinamento ao trabalhador toda vez que
ele mudar de função; enquanto a mexida na NR3 vai limitar o poder de
atuação do delegado do trabalho de interditar uma obra, por exemplo,
quando ele identificar risco iminente aos operários.
A gravidade
da mudança, no caso da NR3, se expressa no fato de ela acabar com a
possibilidade do Estado chegar e agir antes que o acidente ou o
adoecimento ocorra, segundo explica Luiz Scienza, auditor-fiscal do
Trabalho, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de
Medicina da UFRGS e vice-presidente do Instituto Trabalho Digno.
Para
Scienza, as alterações propostas na NR3 tendem a tornar inviável
aplicar uma medida provisória de paralisação de atividades de alto
risco.
“Hoje, em situações extremas, o auditor pode embargar
obras, empreendimentos etc. [Com as mudanças], em lugar de se fazer o
embargo, o auditor vai ter que adotar uma série de medidas anteriores,
cálculos, estimativas de riscos, e enquanto isso os trabalhadores
continuam suas atividades e a vivenciar os riscos extremos verificados.
Isso não tem nenhum sentido, não existe em lugar nenhum do planeta. É
algo completamente fora da realidade”, diz.
Escravidão
“Essa
nova normatização e sistemática certamente adoecerá, amputará e matará
mais trabalhadores. O lucro também é importante, claro, mas não pode
desprezar os outros aspectos. Quando se trata de proteção à vida, será
sempre prioridade, conforme determina a nossa Constituição Federal”,
afirma Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores
Fiscais do Trabalho (Sinait).
Para justificar as alterações,
Bolsonaro escreveu em sua conta no Twitter: “Governo federal moderniza
as normas de saúde, simplificando, desburocratizando, dando agilidade ao
processo de utilização de maquinários, atendimento à população e
geração de empregos”.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP)
questiona as declarações de Bolsonaro – utilizadas também para sustentar
as reformas da Previdência e Trabalhista –, de que o trabalhador
precisa fazer uma escolha: ou ele tem direitos, ou tem emprego.
“Isso
é muito perigoso. O Brasil ocupa a 4ª posição no mundo em acidentes de
trabalho. As principais normas foram elaboradas no governo militar, nas
décadas de 60, 70. É um retrocesso tão grande, que até a possibilidade
de trabalho análogo à escravidão vai retornar. Estão falando até em
flexibilizar a noção de trabalho escravo. É uma lógica extremamente
perversa.”
O jornalista Leonardo Sakamoto, especializado em
direitos humanos e diretor-presidente da ONG Repórter Brasil, também
contesta a lógica presidencial.
“Bolsonaro tem trabalhado com uma
falsa dicotomia entre empregos e direitos. Não é a diminuição de
direitos que gera empregos. O que gera emprego é o crescimento
econômico. Pode criar emprego desregulamentando? Até pode. Mas em nome
de quê? Que tipo de emprego se vai criar?”, pergunta.
Mudar para trás
Carlos
Silva, presidente do Sinait, destaca a relevância das normas alteradas e
seus impactos. “A NR-1 é de extrema importância, estruturante. E a
NR-12 é importantíssima, dizendo respeito a um quadro grave e caótico de
acidentes com máquinas e equipamentos”. De acordo com Silva, “as
alterações já promovidas alcançam quase a totalidade dos ambientes de
trabalho e quase a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras do
país”.
O presidente do Sinait avalia que “é muito grave” a
alteração do caráter (antes deliberativo e mandatório, agora apenas
consultivo e eventual) da Comissão Tripartite que respondia pelas normas
– bem como o fim das atividades das comissões temáticas.
“Na
prática agora, sempre que o governo discordar, acabará por decidir
conforme suas convicções. Só ouvirá e respeitará quando convergir – o
que é grave, extremamente grave”, afirma.
Silva acrescenta que não
é verdade que as normas estejam ultrapassadas, como faz parecer o
discurso oficial, elas sofrem atualização permanentemente, “há décadas.”
“As
normas são revisadas o tempo todo”, corrobora Sakamoto. “Elas refletem a
realidade, bem como o acordo tripartite. Quando há uma evolução, o que é
natural, quando há necessidade, atualiza-se a norma, ou até se cria
uma. Isso é bastante usual. O governo está fazendo essas alterações de
forma atropelada, o que já é questionável, e está fazendo isso em nome
dos empregadores”.
Para Sakamoto, o correto seria pensar também em
nome dos trabalhadores e, ainda, do Estado, de forma consensual e
dentro da legalidade. “De forma atropelada, você pode fazer muita coisa
ruim.”
Scienza reforça o ponto: “As NRs de Saúde e Segurança do
Trabalho tornam concretos direitos e garantias constitucionais. O atual
governo entrou com uma disposição de mudar tudo. As normas foram
classificadas como bizantinas e hostis às empresas, o que não
corresponde à realidade nem em um aspecto nem no outro”.
De acordo
com o dirigente do Instituto Trabalho Digno, “no caso da NR-1, por
exemplo, as alterações atingem direitos internacionais já consagrados,
protegidos por normas e convenções da OIT, a Organização Internacional
do Trabalho. É uma nova norma que atenua, minimiza, transforma o direito
de recursa do trabalhador a não realizar uma atividade que o coloque em
risco numa mera comunicação de risco ao superior. [O fim da regra] é
uma novidade mundial. Isso não existe em lugar algum do planeta.”
Estado esvaziando o Estado
Além
da redução das normas de segurança, o governo também vem desmontando a
estrutura de fiscalização. O déficit de Auditores-Fiscais do Trabalho
estimado pelo Sinaits é de mais de 40%. Dos 3.643 cargos criados por
lei, apenas 2.234 estavam ocupados em abril de 2019.
Um estudo de
2012 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), produzido em
parceria com o Sinait, apontou que, para atender às recomendações da
OIT, o Brasil deveria ter 8 mil Auditores-Fiscais do Trabalho.
Sakamoto
ressalta que, para garantir os direitos civis e políticos, é preciso
controlar a presença do Estado. “Para garantir direitos sociais,
trabalhistas, ambientais etc., não é assim. O Estado precisa atuar, se
fazer presente, para garantir. O que está sendo feito agora é no sentido
de esvaziar essa atuação do Estado em todos os aspectos. É um passo
atrás, um retrocesso”.
Na avaliação de Silva, dio Sinait, “não há
que se falar em modernização e simplificação. O que esta havendo é uma
flexibilização”.
Pior para os bons empresários
As mudanças devem resultar em outros prejuízos à economia e à sociedade.
“As
empresas que já investiram para se adequar às normas vão perder. Você
vai privilegiar quem não segue a lei, faz dumping social, ambiental…É
ruim para as próprias empresas que seguem as leis”, explica Sakamoto.
Para
Luiz Scienza, as novas normas tendem a atender os maus empresários.
“Existem pessoas sérias em todos grupos sociais. O bom empresário não
está interessado em acidentes e no aumento dos riscos em sua atividade.
Os bons empresários não estão nada satisfeitos com o que vai vir, e o
processo está apenas começando”, alerta.
Scienza acredita que o
Brasil possa perder competitividade e mercados mais criteriosos e
exigentes com relação aos direitos dos trabalhadores. “Está faltando uma
visão do macro, da complexidade do tema. Você está criando uma série de
gastos para a Seguridade Social, para a Previdência, por exemplo, que
já são bilionários”, conclui.
No Congresso, a mobilização ainda é
tímida. “O governo que rever 90% das NRs, isso é muito grave. E com uma
argumentação cínica de que vai aumentar a competitividade das empresas.
Eles estão agora fazendo tudo com uma estimativa, projeção para 10 anos.
E falam em uma economia de 68 bilhões de custos no período. Essa medida
é um tiro no pé. Se você é um país exportador, vai estar sujeito a
acordos e fiscalização internacionais. As denúncias de trabalho escravo,
por exemplo, tiveram grande impacto. Se houver desrespeito às normas
trabalhistas, mais acidentes, isso certamente vai gerar repercussão. O
Brasil vai virando um país de barbárie”, finaliza Ivan Valente.
FONTE: Agência Brasil- Do site da CUT
https://www.cut.org.br/noticias/com-ataque-a-normas-de-seguranca-bolsonaro-aumenta-riscos-a-vida-do-trabalhador-caa7
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