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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Justiça do Trabalho: controle dos conflitos sociais e dignidade nas relações trabalhistas


Os conflitos do trabalho não acabarão, ainda que sejam silenciadas vozes coletivas na luta democrática pelos direitos

 Por Elina Pessanha e Karen Artur

  

O campo jurídico trabalhista sempre foi cenário de profundas tensões e disputas em torno de modelos diferenciados de sociedade e de institucionalização das relações capital/trabalho no Brasil. Esse processo tomou formas variadas em diferentes contextos e momentos históricos, mas podemos afirmar que, nos dias atuais, o embate entre os imperativos do mercado e os valores baseados nos requerimentos democráticos está sendo levado a seu ponto máximo, como evidenciam a reforma trabalhista, o fim do Ministério do Trabalho e as falas governamentais sobre a extinção da Justiça do Trabalho. 

Nunca é demais lembrar que a implantação da Justiça do Trabalho em 1941, assim como a consolidação da legislação trabalhista em 1943, sucede-se a um longo processo, iniciado antes mesmo da República, de lutas e conquistas de direitos. De 1891 é a lei de proteção ao trabalho do menor; de 1903 a de sindicalização rural; de 1907, a de sindicalização de todas as profissões; de 1919  a sobre acidentes de trabalho.; e de 1923, a lei Eloy Chaves, de caixas de aposentadoria e pensões nas estradas de ferro, depois estendida a outros setores. Com a Reforma Constitucional de 1926, pela primeira vez aparece a referência à legislação do trabalho, embora funções específicas de “justiça do trabalho” coubessem desde 1922 aos tribunais rurais de São Paulo, dirimindo conflitos entre patrões e colonos imigrantes (Moraes Filho, 1982).

 O movimento de 1930 acelera o processo de regulação e de montagem de uma nova estrutura para gerir as relações trabalhistas. Em 1930, cria-se o Ministério do Trabalho, e seu primeiro consultor jurídico, Evaristo de Moraes, redige, com Joaquim Pimenta, em 1931, o Decreto n. 19.770, que tinha por objetivo regular “a sindicalização das classes patronais e operárias”, já com vistas à atuação de atores constituídos coletivamente. Junto ao novo Departamento Nacional do Trabalho, em 1932, funcionam as Comissões Mistas de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento, embriões da justiça. A Constituição de 1934 finalmente institui a Justiça do Trabalho (título IV, art. 122) “para dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social”. São reconhecidas as convenções coletivas e a composição paritária tripartite das instituições, por representantes de empregadores e empregados e presidente indicado pelo governo.

Proposto em 1936, o anteprojeto de organização da Justiça do Trabalho, do governo Getúlio Vargas expõe um quadro de fortes disputas políticas e ideológicas. De um lado, respondendo a demandas sociais já existentes, tem-se o apoio e a concordância relativa entre as correntes corporativistas, progressistas e cristãs, preocupadas com a correção, pelo Estado, das desigualdades sociais da ordem capitalista e seus efeitos. De outro, tem-se a forte reação liberal: os liberais eram contrários à intervenção estatal e a uma justiça trabalhista federal – tão distante dos interesses locais sedimentados; não queriam que os sindicatos funcionassem como pessoas jurídicas públicas, alegando que a vontade individual deveria prevalecer. Regulamentada em 1939, a Justiça do Trabalho só foi instalada em 1941 por imposição política do chamado Estado Novo. Tornou-se guardiã da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, de 1943,  e foi consagrada pela constituição de 1946, que integrou-a  ao Poder Judiciário.

O caráter controlador da CLT foi exacerbado pelo autoritarismo do regime militar pós-64, mas quando o sindicalismo ressurge no final dos anos 1970 a partir do ABC paulista, começa uma fase de duras negociações e um grande ciclo  de greves no país. A Constituição de 1988, finalmente, fortaleceu o poder da Justiça do Trabalho no julgamento de dissídios coletivos e criação de normas econômicas e sociais, abrindo novas oportunidades às demandas coletivas dos trabalhadores. Mas o contexto econômico e político logo levaria ao forte controle do movimento sindical, contando muitas vezes com a colaboração do judiciário trabalhista. Durante a década de 1990, com o avanço do receituário neoliberal,  o Tribunal Superior do Trabalho teve um papel instrumental central para o encolhimento do Estado e a expansão do mercado. Paralelamente, o governo de Fernando Henrique Cardoso tentou flexibilizar ao máximo as relações de trabalho, terminando por fazer aprovar no Legislativo, no final de 2001,  a prevalência do “negociado sobre o legislado”. O projeto  foi arquivado no início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, a partir de quando o TST, em mais um movimento pendular, revê muitas das medidas controladoras das demandas sindicais vigentes desde 1993, inaugurando um período de maior liberdade para as associações em geral.

Por tudo isso que se expôs, fica claro que o que estamos observando agora, com a chamada reforma trabalhista de 1917, a liberdade da terceirização e finalmente com a proposta de extinção da Justiça do Trabalho é um processo que, em primeiro lugar, ignora o caráter histórico e cumulativo de construção e proteção dos direitos  trabalhistas em nosso país. Ignora a história, as lutas e o investimento de vários atores, por caminhos diversos e mesmo controversos, para aperfeiçoar a lei e as instituições, terminando por constitucionalizar, em 1988,  por via democrática, o núcleo do modelo que tínhamos até há pouco.

Esquece-se também, com as novas mudanças e propostas, da especificidade característica das relações de trabalho.  A lógica do acordo coletivo, que a República de Weimar formalizou e a OIT encampou no início do século XX,  foi um dos alicerces do Direito do Trabalho (Kahn Freund, 1977), por estabelecer a primazia da negociação conduzida necessariamente por entidades autônomas, representativas de grupos ou classes, ou seja, os sindicatos. Ainda que sem um marco legal ideal de autonomia coletiva,  a nossa Justiça do Trabalho especializou-se em acompanhar essa negociação, que envolve cerca de 11 500 sindicatos de trabalhadores e mais de 5200 sindicatos de empregadores existentes no Brasil.

Embora a reforma trabalhista pretenda, com a prevalência do negociado sobre o legislado, afastá-los, a negociação trabalhista, seja coletiva ou individual, implica conflitos. O que igualmente se está ignorando agora, é o papel fundamental que a Justiça do Trabalho sempre desempenhou na canalização de demandas e reclamações das partes, na sua administração e tentativas (bem sucedidas) de conciliação, assim como na garantia jurídica que oferece à condução do processo e à sustentação de seus resultados. Os juízes e juízas do trabalho (mais de 3 mil em todo o país) são formados para lidar com todos esses conflitos, e julgaram quase 5 milhões de processos em 2018. A Justiça do Trabalho tem conseguido manter a manifestação dos conflitos dentro de parâmetros legais definidos, controlar os limites dos atos praticados, e muitos magistrados vem tentando ainda preservar valores humanistas e a consciência social tanto dos trabalhadores quanto dos empregadores.

Mais do que uma instituição a favor de uma ou outra parte do conflito, portanto, a Justiça do Trabalho espelha uma relação social e aparece nas pesquisas acadêmicas especializadas como um dos lócus de disputa dos sentidos dos direitos, tanto pelos trabalhadores como pelos empregadores, aliás, especialmente por esses últimos, a exemplo das demandas recorrentes pela ampliação irrestrita da terceirização. Nunca significou, assim, um lócus seguro de garantia automática de novos direitos para os empregados. Antes, tem sido mais um espaço de defesa e manutenção de prerrogativas básicas e humanitárias conquistadas, e também de construção social de outros direitos a partir, por exemplo, da Constituição de 1988 e da Organização Internacional do Trabalho, como os de não-discriminação e de combate ao trabalho escravo.

Hoje vive-se um momento no qual o que está em jogo não é apenas o confronto entre as lógicas de mercado e da cidadania democrática. Evidencia-se a imposição de regras que colocam o mercado em vantagem por meio do esvaziamento do papel do Estado e das políticas públicas, e da extinção das instituições do trabalho.

Mas os conflitos do trabalho não acabarão, ainda que sejam silenciadas vozes coletivas na luta democrática pelos direitos. Continuarão acontecendo, e o Direito do Trabalho e suas instituições e atores serão importantes para elaborar e enfrentar os desafios que certamente virão.

Elina Pessanha é Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisadora do CNPq.

Karen Artur é Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.



 Do site Carta Maior

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Estado-Democratico-de-Direito/Justica-do-Trabalho-controle-dos-conflitos-sociais-e-dignidade-nas-relacoes-trabalhistas/40/43018

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