Justiça do Trabalho: controle dos conflitos sociais e dignidade nas relações trabalhistas
Os conflitos do trabalho não acabarão, ainda que sejam silenciadas vozes coletivas na luta democrática pelos direitos
Por Elina Pessanha e Karen Artur
O campo jurídico trabalhista sempre foi cenário de profundas tensões e
disputas em torno de modelos diferenciados de sociedade e de
institucionalização das relações capital/trabalho no Brasil. Esse
processo tomou formas variadas em diferentes contextos e momentos
históricos, mas podemos afirmar que, nos dias atuais, o embate entre os
imperativos do mercado e os valores baseados nos requerimentos
democráticos está sendo levado a seu ponto máximo, como evidenciam a
reforma trabalhista, o fim do Ministério do Trabalho e as falas
governamentais sobre a extinção da Justiça do Trabalho.
Nunca é
demais lembrar que a implantação da Justiça do Trabalho em 1941, assim
como a consolidação da legislação trabalhista em 1943, sucede-se a um
longo processo, iniciado antes mesmo da República, de lutas e conquistas
de direitos. De 1891 é a lei de proteção ao trabalho do menor; de 1903 a
de sindicalização rural; de 1907, a de sindicalização de todas as
profissões; de 1919 a sobre acidentes de trabalho.; e de 1923, a lei
Eloy Chaves, de caixas de aposentadoria e pensões nas estradas de ferro,
depois estendida a outros setores. Com a Reforma Constitucional de
1926, pela primeira vez aparece a referência à legislação do trabalho,
embora funções específicas de “justiça do trabalho” coubessem desde 1922
aos tribunais rurais de São Paulo, dirimindo conflitos entre patrões e
colonos imigrantes (Moraes Filho, 1982).
O movimento de 1930
acelera o processo de regulação e de montagem de uma nova estrutura para
gerir as relações trabalhistas. Em 1930, cria-se o Ministério do
Trabalho, e seu primeiro consultor jurídico, Evaristo de Moraes, redige,
com Joaquim Pimenta, em 1931, o Decreto n. 19.770, que tinha por
objetivo regular “a sindicalização das classes patronais e operárias”,
já com vistas à atuação de atores constituídos coletivamente. Junto ao
novo Departamento Nacional do Trabalho, em 1932, funcionam as Comissões
Mistas de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento, embriões
da justiça. A Constituição de 1934 finalmente institui a Justiça do
Trabalho (título IV, art. 122) “para dirimir questões entre empregadores
e empregados, regidas pela legislação social”. São reconhecidas as
convenções coletivas e a composição paritária tripartite das
instituições, por representantes de empregadores e empregados e
presidente indicado pelo governo.
Proposto em 1936, o
anteprojeto de organização da Justiça do Trabalho, do governo Getúlio
Vargas expõe um quadro de fortes disputas políticas e ideológicas. De um
lado, respondendo a demandas sociais já existentes, tem-se o apoio e a
concordância relativa entre as correntes corporativistas, progressistas e
cristãs, preocupadas com a correção, pelo Estado, das desigualdades
sociais da ordem capitalista e seus efeitos. De outro, tem-se a forte
reação liberal: os liberais eram contrários à intervenção estatal e a
uma justiça trabalhista federal – tão distante dos interesses locais
sedimentados; não queriam que os sindicatos funcionassem como pessoas
jurídicas públicas, alegando que a vontade individual deveria
prevalecer. Regulamentada em 1939, a Justiça do Trabalho só foi
instalada em 1941 por imposição política do chamado Estado Novo.
Tornou-se guardiã da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, de 1943, e
foi consagrada pela constituição de 1946, que integrou-a ao Poder
Judiciário.
O caráter controlador da CLT foi exacerbado pelo
autoritarismo do regime militar pós-64, mas quando o sindicalismo
ressurge no final dos anos 1970 a partir do ABC paulista, começa uma
fase de duras negociações e um grande ciclo de greves no país. A
Constituição de 1988, finalmente, fortaleceu o poder da Justiça do
Trabalho no julgamento de dissídios coletivos e criação de normas
econômicas e sociais, abrindo novas oportunidades às demandas coletivas
dos trabalhadores. Mas o contexto econômico e político logo levaria ao
forte controle do movimento sindical, contando muitas vezes com a
colaboração do judiciário trabalhista. Durante a década de 1990, com o
avanço do receituário neoliberal, o Tribunal Superior do Trabalho teve
um papel instrumental central para o encolhimento do Estado e a expansão
do mercado. Paralelamente, o governo de Fernando Henrique Cardoso
tentou flexibilizar ao máximo as relações de trabalho, terminando por
fazer aprovar no Legislativo, no final de 2001, a prevalência do
“negociado sobre o legislado”. O projeto foi arquivado no início do
governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, a partir de quando o TST,
em mais um movimento pendular, revê muitas das medidas controladoras
das demandas sindicais vigentes desde 1993, inaugurando um período de
maior liberdade para as associações em geral.
Por tudo isso que
se expôs, fica claro que o que estamos observando agora, com a chamada
reforma trabalhista de 1917, a liberdade da terceirização e finalmente
com a proposta de extinção da Justiça do Trabalho é um processo que, em
primeiro lugar, ignora o caráter histórico e cumulativo de construção e
proteção dos direitos trabalhistas em nosso país. Ignora a história, as
lutas e o investimento de vários atores, por caminhos diversos e mesmo
controversos, para aperfeiçoar a lei e as instituições, terminando por
constitucionalizar, em 1988, por via democrática, o núcleo do modelo
que tínhamos até há pouco.
Esquece-se também, com as novas
mudanças e propostas, da especificidade característica das relações de
trabalho. A lógica do acordo coletivo, que a República de Weimar
formalizou e a OIT encampou no início do século XX, foi um dos
alicerces do Direito do Trabalho (Kahn Freund, 1977), por estabelecer a
primazia da negociação conduzida necessariamente por entidades
autônomas, representativas de grupos ou classes, ou seja, os sindicatos.
Ainda que sem um marco legal ideal de autonomia coletiva, a nossa
Justiça do Trabalho especializou-se em acompanhar essa negociação, que
envolve cerca de 11 500 sindicatos de trabalhadores e mais de 5200
sindicatos de empregadores existentes no Brasil.
Embora a reforma
trabalhista pretenda, com a prevalência do negociado sobre o legislado,
afastá-los, a negociação trabalhista, seja coletiva ou individual,
implica conflitos. O que igualmente se está ignorando agora, é o papel
fundamental que a Justiça do Trabalho sempre desempenhou na canalização
de demandas e reclamações das partes, na sua administração e tentativas
(bem sucedidas) de conciliação, assim como na garantia jurídica que
oferece à condução do processo e à sustentação de seus resultados. Os
juízes e juízas do trabalho (mais de 3 mil em todo o país) são formados
para lidar com todos esses conflitos, e julgaram quase 5 milhões de
processos em 2018. A Justiça do Trabalho tem conseguido manter a
manifestação dos conflitos dentro de parâmetros legais definidos,
controlar os limites dos atos praticados, e muitos magistrados vem
tentando ainda preservar valores humanistas e a consciência social tanto
dos trabalhadores quanto dos empregadores.
Mais do que uma
instituição a favor de uma ou outra parte do conflito, portanto, a
Justiça do Trabalho espelha uma relação social e aparece nas pesquisas
acadêmicas especializadas como um dos lócus de disputa dos sentidos dos
direitos, tanto pelos trabalhadores como pelos empregadores, aliás,
especialmente por esses últimos, a exemplo das demandas recorrentes pela
ampliação irrestrita da terceirização. Nunca significou, assim, um
lócus seguro de garantia automática de novos direitos para os
empregados. Antes, tem sido mais um espaço de defesa e manutenção de
prerrogativas básicas e humanitárias conquistadas, e também de
construção social de outros direitos a partir, por exemplo, da
Constituição de 1988 e da Organização Internacional do Trabalho, como os
de não-discriminação e de combate ao trabalho escravo.
Hoje
vive-se um momento no qual o que está em jogo não é apenas o confronto
entre as lógicas de mercado e da cidadania democrática. Evidencia-se a
imposição de regras que colocam o mercado em vantagem por meio do
esvaziamento do papel do Estado e das políticas públicas, e da extinção
das instituições do trabalho.
Mas os conflitos do trabalho não
acabarão, ainda que sejam silenciadas vozes coletivas na luta
democrática pelos direitos. Continuarão acontecendo, e o Direito do
Trabalho e suas instituições e atores serão importantes para elaborar e
enfrentar os desafios que certamente virão.
Elina Pessanha é
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisadora do CNPq.
Karen Artur é Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Do site Carta Maior
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Estado-Democratico-de-Direito/Justica-do-Trabalho-controle-dos-conflitos-sociais-e-dignidade-nas-relacoes-trabalhistas/40/43018
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